Aterro em Barcelona mal disposta de tanto mau-feitio.
Fujo de 2018, de Portugal e de um fim de ano que me pesa a alma, que me faz querer longe e de consciência pesada.
Dois mil e dezoito foi o ano desalmadamente afortunado. O mais cruel e mais gratificante, nunca na mesma medida. Nunca na mesma medida, nunca mais feliz do que triste. E por isso desertei.
A Dani atravessou o Atlântico para conhecer a península ibérica, também ela fugida de um 2018 desgraçado.
Então, fugimos as duas.
Barcelona é a cidade que me acolhe quando preciso escapar. Em 2016, a uma semana de emigrar para os EUA, aqui me refugiei. Aqui ganhei coragem para enfrentar o novo mundo, o incógnito e a saudade. Foi no meio das nuvens e numa ligação de autocarro, entre terminais do aeroporto, que dois desconhecidos ouviram a minha história e empurraram a minha decisão. Por tudo isto, voltei a Barcelona.

Deitada num banco de mármore branco, faço o balanço do ano que passou.
Estou sozinha, na primeira manhã do ano novo. Há um idoso encadeirado e de boina que me aborda, que me acautela para colocar a carteira do Harry Potter junta a mim. Eu sorri-lhe, porque estava atenta, e ele transportou-se até mim porque estava entediado. Conversámos.
A minha primeira conversa de dois mil e dezanove foi em espanhol. A primeira ironia do ano, às dez e cinco da manhã. Porque espanhol é a única língua que teimo não falar, porque me rio dos meus próprios sons e pobres pronúncias.
Tudo isto à sombra do Arco de Triunfo, altivamente alaranjado, albergue dos papagaios verdes que discutem de manhã à noite. Há bicicletas sem selim, máquinas fotográficas antigas, patins em linha, praticantes de yoga, conversas gratuitas e cães sem trela. Há casais que se beijam de baixo do arco, ao lado do arco, dentro do arco, fora do arco e perpendiculares ao arco. Há abraços amigos, poses ensaiadas e selfies. E lá longe, vem a Dani.

Barcelona é a cidade dos passos perdidos, dos minimercados em todos os cantos e das catedrais. Há história, há dezenas de praças e pombas, botecos, cafés antigos, vitrinas de doces e vinhos. Há sempre música, badalos e sotaques variados que ecoam pelos becos. Em cada esquina um queijo, uma tapa, uma copa de vinho e uma cerveja Estrella Galicia. Há sorrisos e despreocupação, não só dos turistas mas dos locais. É a cidade “hakuna matata”.

Assim nos fomos aventurando e subimos aos bunkers del Carmel. A vista mais privilegiada e cobiçada de Barcelona. A subida é íngreme e desafiante, mas a vista do cimo do monte é de cortar a respiração e de fazer esquecer a dor nas canetas. O truque está em comprar bebidas e petiscos antes de começar a subir, porque nada há a meio caminho, e de ir parando para respirar fundo. Chegadas ao cume, esperámos que um lugar vago surgisse e aconchegámo-nos. Abrimos um pacote de Cheetos, uma garrafa de vinho tinto, esperámos pelo pôr-do-sol e pelo gargalo brindámos ao novo ano. Não há vista melhor que esta, garantidamente.

Os dias foram passados a descontrair, sem vontade de ir onde os turistas vão. O parque Güell foi apreciado de cima e por fora, bem como a antiga arena dos touros conhecida como La Monumental, a Torre Glòries, a casa Batlló, o Montjuïc, os passeios de Gràcia e as Ramblas. A Sagrada família foi também apreciada por fora, por várias horas. Foi a segunda vez que a vi, e mesmo assim alonguei o pescoço ao máximo. É incrivelmente majestosa e infinita. Questiono a criatividade por trás da obra, das centenas de milhares de pessoas que a contemplaram ao longo dos seus 137 anos de existência, da visão de Gaudí, da irreverência e significado deste templo para sempre em construção. De tal forma me intrigou que me sentei num banco à beira da estrada, lado a lado com um idoso barcelonês, abri o meu bloco de notas e escrevi até que a imaginação se cansasse. A Sagrada Família despoletou vontade de conhecer mais de Gaudí e por isso rumámos à Casa Milà.

Situada no centro dos passeios de Gràcia, a também conhecida por, La Pedrera desperta curiosidade pelo exterior de pedra cujos relevos ondulantes memoram as cavernas. É uma obra de arte que funde eras e estilos, que mostra Barcelona por oito pisos diferentes, com dezenas de quartos e objetos antigos. Faz querer voltar no tempo, faz querer acordar ali numa manhã solarenga de há cem anos atrás. E mais uma vez, a dúvida que inquieta: como nasce um Homem noutro século capaz de projetar e criar várias obras de arte gigantes e futuristas, até hoje, inigualáveis? Serei eu ingénua ou inculta, contudo maravilhada.
A meu ver, Gaudí nasceu fora do seu tempo, foi o arquiteto de Barcelona, quem tornou esta cidade num paraíso monumental e o responsável por atrair milhares de turistas. Eu, incluída.

Cumpridos os requisitos turísticos, básicos e obrigatórios, voltámos à nossa parte favorita. A de deambular pelas avenidas sem rumo ou mapas. O bairro Gótico, na zona mais velha de Barcelona, foi o destino e por lá nos perdemos.
Vimos os defensores das pombas protestarem, as montras dos saldos, as feiras de velharias e os homens-estátua. Almoçámos o menu do dia, que inclui paelha de entrada, prato principal, sobremesa e café por dez euros. A ideia de dormir a siesta foi tentadora, por ventura seguimos. Entrámos em tascos, bebemos copas de vinho, petiscámos alcachofras grelhadas, tapas de queijo e azeitonas picantes.

Entre as paragens de abastecimento fomos fotografando, eu a cores a Dani a preto e branco.
Eu encostada pelos cantos a escrever, ela agachada em lugares improváveis à espera do momento perfeito para dar o clique na máquina de rolo.

 

 

 

 

 

 

 

Com pouca vontade fechámos malas, eu regressei ao meu Portugal e ela à cidade que nunca dorme.
2019 começou em Barcelona, com as mesmas dores do ano morto mas com tamanha vontade de continuar a vencer e a viajar.

Hasta pronto, Barcelona

Gracias!

 

Galeria fotográfica por Dana Glick

Author

Comments are closed.