Cravado na porta da casa um cachalote de ferro com uma pega. Na banca sarapintada da cozinha pão lêvedo, leite, água e manteiga regional. Na garrafeira, licor de maracujá. E pela janela do terceiro andar, há infinitos verdejantes e gado, preto e branco, que se arrasta pela paisagem. Estou nos Açores.
Esta viagem surge na urge de estar longe de casa quando mais um ano da minha vida se comemora. É a primeira vez de toda uma vida que desejei que esta minha celebração parideira fosse adiada, por tempo indefinido. Falta-me a metade direita do corpo, tomara que fosse canhota. No entanto, contrariando os maus diabos, fiz malas, recrutei companhia e fiz-me à pista de Ponta Delgada. Apesar de já ter viajado muito mundo, nunca havia aterrado em território português que não fosse Porto ou Lisboa. E por esse motivo, e estupidamente, cometi o erro inocente de responder “Sou de Portugal” ou “Quando regressar a Portugal”, duas ou três vezes.
Fui automaticamente, e muito bem, corrigida. Esperançosa que não tenha sido banida das ilhas portuguesas para sempre.
Escolher os Açores como destino significa também escolher alugar um carro ou agendar, atempadamente, excursões. Como não gosto de cumprir horários quando estou de férias, ou de andar em rebanho, aluguei um carro através do Go rent-a-car. (E que maravilha não ser exigido cartão de crédito quando nesta empresa).
De chaves na mão, conduzi até ao Airbnb, pousámos malas e fomos abastecer a casa. Decidimos que cozinhar e preparar marmitas nos pouparia tempo e dinheiro. Com apenas quatro dias e meio para conhecer São Miguel, todo o tempo é pouco.
Ativámos o despertador para de manhã bem cedo, abrirmos uma garrafa de vinho, esboçámos um itinerário e dormimos.
A primeira paragem da manhã seguinte foi a Plantação de Ananases Augusto Arruda, onde as estufas brancas surgem alinhadas. Há centenas de ananases plantados em carreiros, que mostram o crescimento da vida do ananás dos Açores. Há também centenas de turistas, que chegam aos largos grupos em excursões. A entrada é grátis e se estiveres com sorte, dois gatos simpáticos subirão pelo teu corpo à procura de mimo.

Seguimos caminho para a Caldeira Velha.
De marmitas às costas exploramos o monumento natural, despimos a roupa fresca e corremos para nos pormos de molho. Cheira a ferro pelo ar, a água borbulha e fumega dentro das caldeiras. Fecho os olhos, empoleirada numa pedra, e ouço a cascata, os sapos, as cigarras e os chilreios. As nascentes de água que enchem os mini tanques são quentes e de origem termal, convidativas a por ali ficar até as mãos enrugarem.

Um tanto ao quanto desnorteada, pela falta de GPS, conseguimos encontrar a lagoa do Fogo. Abrimos o vinho, desembrulhámos as sandes de queijo, sentámo-nos na encosta e bebemos aquela paisagem de cortar o fôlego. Uma lagoa com uma extensão de areia no seu meio, que quase separa a lagoa em duas. As suas margens deixam ver a água transparente que banham as encostas verdes. Não parece real, parece um paraíso que o turismo ainda não desfigurou. Há quem se aventure e desça as montanhas até à água, mas nós seguimos viagem até ao Salto do Cabrito.
Caminhar por cima de túneis gigantes e compridos no meio da selva, subir escadarias acentuadíssimas e atravessar pontes esguias, não estava planeado. No entanto, não há melhor aventura que explorar a Natureza. Encontrámos a cascata, despi o vestido e entrei na gélida água da montanha, onde o sol não toca a esta hora. Por cima de mim, turistas aventureiros que descem o Salto do Cabrito em rappel e que gritam euforicamente.
De cabelo molhado, seguimos para a Lagoa do Congro. Descemos a floresta lamacenta e apreciámos um postal com milhares de tons verdes. Há silêncio humano. Aqui só o som do voar dos pássaros, das folhas que dançam e dos peixes que saltam no rio. Não há pressa em abalar, mas a barriga deu horas e por isso terminámos o dia em Vila Franca do Campo. A comer as, ditas, melhores queijadinhas de São Miguel.
De volta ao Airbnb, bebo o resto do vinho sentada no varandim de pedra enquanto me despeço do sol.

Eram nove da manhã quando estacionei na Gorreana, a mais velha e agora única plantação de chá da Europa. Hoje, curiosamente, é o primeiro dia da apanha da folha, amanhã será dia de secagem. Aqui há plantações de chá verde e preto, campos e campos de plantações. Visitámos a fábrica, bebemos o chá, registámos a vasta produção e seguimos para o Nordeste.
Mais uma vez desnorteadas, demos por nós na Povoação. O município pioneiro, o que recebeu os primeiros descobridores e onde começou o povoamento da ilha de São Miguel. Comeu-se peixe grelhado, no restaurante de família Jardim, descarregou-se o mapa no Google Maps e fomos à procura do parque Terra Nostra.
Pelo caminho passámos pelas furnas, pela Poça da Dona Beija e pelo parque Terra Nostra. O tempo era nosso, não havia pressas ou horários a cumprir. Por esse motivo aproveitámos o parque Terra Nostra ao máximo. As piscinas são alimentadas por nascentes de água quente, de origem termal e acastanhada, devido à grande abundância de ferro existente na água. É muito aconselhável vestir um fato-de-banho preto e velho, porque mancha não só a roupa como o cabelo. Quem tem o cabelo, naturalmente ou artificialmente, claro quererá manter a cabeça enxuta ou haverá surpresas, pigmentadas, capilares nos dias seguintes.

A noite ia serena quando o telemóvel tocou, o Instagram apitou e o Facebook piscou. Era meia-noite no Continente, onze horas nos Açores. As primeiras felicitações de aniversário foram chegando, publiquei uma fotografia no meio das vacas Açoreanas e fui dormir. Por mais que o telemóvel tocasse havia uma chamada que eu, pela primeira vez na minha vida, sabia que não ia receber.

Acordo leve e feliz. Com cheiro de pão lêvedo torrado, ovos estrelados e café. Ouço a voz da minha avó pelo telefone, que me conforta e tranquiliza a alma inquieta. Espreitamos o itinerário e fazemo-nos à estrada, em busca do miradouro a Boca do Inferno. O céu está carregado com nuvens cinzentas, talvez chova talvez não. Está mais frio que o habitual neste cume, mas o nevoeiro dissipa-se e deixa meditar sobre a Lagoa das Sete cidades. Uma fusão de verdes e azuis. Azul do céu, da água, o verde das encostas e do rio. Esta é das paisagens mais bonitas que os meus olhos já pousaram. Na descida da montanha encontramos o Monte Palace Hotel, ou o que resta dele. É um hotel abandonado, vedado e trancado com correntes metálicas. No entanto, e mesmo que se leiam avisos que proíbem o trespasse, os curiosos arranjam maneira de se esgueirarem pelas ruínas. Nós não somos exceção. Entre o lixo, vigas de ferro penduradas, paredes grafitadas, alcatifas ensopadas e vento que assobia pelos corredores vazios, é possível ver o potencial deste espaço. Como quando vimos o Titanic no fundo do mar e imaginámos a grandiosidade do navio ainda em vida. Facilmente imaginei casais apaixonados, carrinhos de limpeza, o som das campainhas, as camas confortáveis e as cores das malas de viagem. Em comum, com o antigamente e o agora, a vista da lagoa das sete cidades. Essa continua lá, pronta a ser admirada em qualquer quarto do hotel. Curiosamente, o hotel voltará à vida daqui a meia dúzia de anos. E mesmo que eu não volte aos Açores, guardo o privilégio de vaguear nos salões abandonados do outrora Monte Palace Hotel.

Como manda a minha tradição, todos os meus aniversários são dias de batismo. Os vinte e nove não fugiram à regra. Antes de seguirmos caminho, encostei o carro perto da ponte dos sete arcos, ignorei os patos que dormiam na relva e mergulhei na lagoa das sete cidades. É importante que este dia cumpra algumas normas que me deixam feliz e esta, tão simples, foi a que me arrancou o maior sorriso.
Estava na hora de almoçar.

Rumamos a Mosteiros, terra conhecida pelas piscinas naturais e no meio do mar. Vagueámos e comemos as melhores lapas num restaurante chamado Gazcidla. O nome pode ser de difícil pronunciação, mas não haverá dificuldade em pedir lapas. Chegam fumegantes, suculentas e bem cheirosas. Uns tchin-tchins depois seguimos para Ferreirinha onde assistimos ao pôr-do-sol. Chegamos ao Airbnb com tempo para relaxar antes de nos apresentarmos no famoso restaurante “A Tasca”, para o meu jantar de aniversário.
Houve vontade de, no dia em que regressávamos ao Continente, madrugar e de ver o primeiro nascer do sol com a minha nova idade. Aconselharam a Ponta da Madrugada para o fazer, no entanto com a nova idade, nova ronha. Desliguei o despertador e virei para o outro lado, como me arrependo agora de ter cedido ao quentinho dos lençóis.
Quatro dias e meio foram suficientes para conhecer, levemente, São Miguel. Com a possibilidade de ainda nos cruzarmos com as mesmas pessoas que estavam no mesmo voo, no mesmo restaurante e atração turística que nós.
Fica o desejo de voltar no Verão e de conhecer as restantes ilhas. Porque Portugal é lindíssimo, e de tanto que se viaja para fora é de lamentar não se conhecer mais o que é tão nosso.

Photo Gallery by, the amazing, Dana Glick

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