Sentada na cadeira ripada de metal, na varanda que admira a calla St. Elia, relembro como cá vim parar outra vez. E sozinha. 

Nem sei o que sinta.

Despedi-me do grupo a quem mostrei Malta. Vi-as, uma a uma, a passar a porta de embarque e procurei a minha. Aterrei em Catania e corri para a paragem de autocarro, onde esperaria pela boleia até Palermo Centrale. Na correria, parei numa pastelaria e comprei um Arancine de pistaccio. O formato lembra-me uma cochicha brasileira, em asteróides.
Não faço ideia do que comi, mas satisfez-me. Paguei e disse “Gracias” “Gazzi” e “thank you”. O senhor que lá trabalha riu-se em bom som e respondeu “Prego”! Mas eu já ia longe e rosada nas bochechas. 

Fico sempre desconfortável a falar outra língua, que não o português ou o inglês. Sei que não sei o sotaque e mesmo que saiba as palavras, não me aventuro.

Consegui embarcar num autocarro que parte mais cedo para Palermo. Tive apenas que mudar o meu bilhete a custo zero. Fiquei feliz porque ganhei tempo e tempo ganho em Santa Flávia, é o melhor tempo que ganho este ano.
Entrei no autocarro, mas não antes que uma pomba tenha defecado na minha cabeça. Diz que é boa sorte, eu digo que tenho o cabelo empastado de merda. Engraçado que só duas vezes isto me aconteceu. Nas duas vezes, estava de coração partido. Talvez as pombas o saibam. Talvez por isso façam pontaria com o rabito à minha cabeça. Para me lembrar que posso estar sempre pior.

Fiz a viagem com o tempo contado. Assim que o autocarro parasse, tinha doze minutos para sair e entrar num comboio. O último de bilhete de comboio de Palermo para Santa Flávia custou-me 2€. Partia às 16H58. Perdendo o comboio a única solução era chamar um Uber, que me custaria 60€.
O autocarro atrasou-se 10 min, restou-me dois minutos. O que me fez ferver de ansiedade.
Assim que a porta abriu, corri para o comboio. Com uma mochila às costas e outra ao peito.
Entrei no comboio e ele partiu. Quase fiquei sem ar.

20 min depois cheguei a Santa Flávia.
30 min depois disso os meus pés pisam St.Elia.

É como voltar ao paraíso. Aquilo que representa o paraíso para mim, agora. 

Onde o inglês pouco ou nada se ouve, onde o turista pouco ou nada se vê.
Onde acordo antes do nascer do sol e me deito assim que ele se vai.
Onde se come pouco fora e se cozinha muito dentro.
Onde se fuma pouco, porque nada mais há para fazer, e muito se lê.
Onde cumpro horário para estar ao sol, para cozinhar e beber água.
Onde quase nado nua ou de mamas ao léu. Quase, porque mesmo que outras se aventurem, falta-me a coragem.

Pego no mesmo livro que tirei da mesma prateleira, há um ano. Recomeço a lê-lo e passo as folhas que me vou lembrando. Li mais nestes dias, que no ano inteiro.
Fui feliz estes dias. Já fui muito mais feliz aqui. Só aqui estou, hoje e agora, porque há um ano aqui estivemos. Aqui mapeamos parte da lua-de-mel. Tão rapidamente nos apaixonamos pela vila, que com a mesma rapidez marcámos para o ano seguinte. O objetivo era celebrar o primeiro ano de casamento com testemunhas. Na verdade, já casámos há mais tempo sozinhas.
Lá sabia eu que aqui voltaria, sozinha. Separada, triste, desapontada, cansada, perdida e descrente no amor.
Chorei mais vezes do que estava à espera. 

Compreendi tudo o que italiano me diziam, especialmente as idosas que reclamavam na minha direção. Não comigo. Reclamavam sobre os jovens que poluem, que não respeitam o ambiente. Por algum motivo, viam em mim uma oportunidade para desabafo. Talvez pareça italiana, já que noutros me países me tiram a pinta por isso, porque não aqui também?
Limitei-me a acenar, a franzir as sobrancelhas e a abanar a cabeça. Como quem percebe mas não consegue falar.
Só uma vez me arreliou perceber tudo.
Foi no restaurante onde jantei na noite em que cheguei. Ninguém falava inglês. A moça esforçava-se, eu também. Entre gestos e palavras arranhadas, lá nos entendemos. Comi “fritatta de marisco”, pasta siciliana e bebi água com gás. Eles adoram água com gás aqui, talvez resolvesse a azia do homem que vos falo agora.

Quando o colega da moça que me atendia, e pouco entendi, começou o seu turno, ouvi-o gritar “è da sola? Cenare da sola?” E isso chateou-me.
Chateou-me o tom reprovativo de quem vive sempre no mesmo sítio. De quem tem só espírito de vila, vilão.
Lembrou-me o machismo, a pena por ver uma mulher a jantar sozinha, por escolha. Sem que seja uma pobre, triste coitada que não tem ninguém que lhe faça companhia.
Quis gritar “si, sola!” Mas fiquei calada. Não o olhei nos olhos e não lhe falei.
Talvez por isso não tenha mais jantado fora. Com 30€ cozinhei seis vezes “em casa”.

E eu não sou assim. A Michelle de há muitos meses tinha voltado aquele restaurante. Tinha pedido aquele empregado uma mesa para una, tinha deixado uma gorjeta sola, tinha aprendido uma frase em italiano e feito um brilharete. Mas a Michelle de agora está ferida. Qualquer distração, empurra-me para o abismo. Concentro-me e lambo as feridas. Só eu me consigo trazer de novo à vida, e por isso preservo a minha energia.

Aqui ouço as gaivotas, os gatos, as bicicletas com rodas, o batuque das bolas de brincar, a orquestra filarmónica que ensaia à noite, o varrer das escadas e os mergulhos. Ouço o italiano, puro e cantado.
Aqui o manjericão vive nos vasos plantados na rua, aparentemente sem vigia. E eu que tanto me esforço para não matar o meu.

Aqui vê-se o amor: os beijos dentro de água, em cima da mota, à porta do restaurante. Em todo o lado e com quem for, é o amor na ponta dos lábios.
Estes dias não foram corridos, é com espanto que me apercebo que quero ir embora. Que tenho de ir embora. E que quero voltar. Melhor e sarada, para dar ao sítio a mesma energia que me oferece.

Tomo um último café na varanda

Podia ter esta vista todos os dias até ao meu último. Ou talvez, seja o ter os dias contados que façam desta casa tão especial. Talvez, se todas as manhãs eu aqui acordasse, quisesse ir embora para sempre. Sei que o meu fado, é Portugal. O meu coração só se sente em casa, para sempre, em Aveiro. Sem que se sinta sufocado e sem que me queira fugir. E por tudo isto, repeti a proeza e iniciei uma tradição: volto a St.Élia em 2024.
Para outro ninho plantado à beira-mar. Para criar novas memórias. Outras que não me façam chorar de tristeza e me façam sentir pequena. Outras que me façam querer voltar, só pelos bons motivos. 

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2 Comments

  1. Susana Freitas

    E vivam as novas memórias, os recomeços… vai voltar a sentir-se grande, corajosa, confiante… em breve, muito em breve voltará a ser o furacão Michelle. Até lá… viva cada momento e inspire-se para um novo livro, que será um novo e grande amor!

  2. Maria 🍣

    um abraço para ti, miúda
    Im raining
    ♥️