O telejornal ainda não havia começado quando nos sentámos à mesa. Alguma coisa não estava bem. Sentia-o e via-o, na cara amarelada e olhos cansados. Achei, achámos, normal. Na verdade havia já alguns poucos dias que ele se queixava da falta de apetite. Mas não queria ir ao médico, nem sequer ouvir a voz dele ao telefone. Ele é teimoso, quando chega a hora de ir ao médico. Na verdade, ainda não conheço idoso que não o seja. Aprendem na mesma escola, criam e estimam um medo comum: o de ir ao médico. Talvez receiem más notícias, que a idade traz.

Pouco nos vimos nessa semana, era a semana do Natal e mesmo com o bicho à solta queríamos o espírito natalício:

⁃ Como estás hoje, avô?

⁃ Muito melhor!

⁃ Não é melhor ligar ao médico?

⁃ Não!

E não se ligou, quando se deveria ter ligado. Não fui mais teimosa, quando o deveria ter sido. Vai ficar tudo bem, pensei eu. É Natal!

A família sentou-se à mesa, ainda o telejornal não tinha começado. Ele pouco ou nada comeu. Ele pouco falou. E quando ficou em silêncio, revirou os olhos e caiu quase desamparado no chão. Quase, alguém de nós o amparou. Não eu, eu congelei dentro do meu corpo. Como se subitamente assistisse a um filme de terror, que tinha como cenário o chão da sala de jantar.

O tempo parou.

Pensei que a morte tivesse entrado novamente na minha casa. Pensei que também ela se tivesse sentado connosco à mesa e quando a hora chegou, tivesse tocado no ombro do meu avô.

Senti medo como nunca antes. Porque quando a morte levou o meu pai, não me deu tempo para sentir medo. Só o vazio que chega depois.

Sei agora que não foi a morte. Foi só o coração cansado a pedir uma bateria extra para continuar a palpitar com fulgor.

Entrei com ele na ambulância, quando não o deveria ter feito. Queria todos os segundos perto. E a última vez que vi o meu avô, ao vivo e a cores, foi no dia 24 de Dezembro. Sentado, dentro de uma ambulância. Deslizaram a porta e antes de ele me desaparecer da íris disse-me:

⁃ vai para dentro, Michelle.

Houve tanto silêncio depois.

Dias depois, sabe-se que ele tem o bicho.

81 anos, covid-19 positivo e assintomático. Não tivesse sido o coração a abrandar, nunca saberíamos que ele o tinha.

Todos nós testámos negativo, todos em contacto com a DGS. Todos vigilantes de nós. E eu a sobrevoar o Atlântico, com medo de tudo e do sei lá o quê, a viajar com a permissão do médico. Voltei a testar negativo, duas vezes cá, deste lado do telefone e ainda do Atlântico. Nenhum sintoma senti, nem nenhum de nós até hoje.

Depois do telejornal ter terminado, estávamos os cinco à mesa. Com a comida gelada à espera que alguém a comesse. Ninguém o fez. Chorou-se, afastou-se os pensamentos negativos, espalhámo-nos juntos pela sala de estar e ali ficámos até de madrugada à espera de qualquer notícia.

O meu 2020 terminou igual a ele próprio. Com medo e sorte. Muita sorte. Não porque sou especial, ou porque a mim não acontece, foi sorte. A única bala do tambor disparou mas não matou nenhum de nós, por sorte.

O ano virou com medo e esperança. Continuamos a viver num labirinto onde todas as saídas culminam na ponta do precipício.

Fiquemos no meio do labirinto, juntos. Mentalmente aconchegados uns aos outros. Juntos no medo, nos picos de esperança e na ansiedade que desce quando pensamos no futuro.

Estamos cada dia mais perto do fim.

Continuemos na luz, na esperança e na luta. Há muito bons humanos por aí. Há também empatia, solidariedade e muito amor. Não nos deixemos cair na discórdia, no ódio, no apontar do dedo, na miséria humana. Esse é o outro bicho, o que nos mata a mente, a sanidade e a boa alma.

Não tarda acordamos deste pesadelo.

Aos profissionais de saúde, os soldados na frente da batalha, os heróis que não voam de capa, aos grandes salvadores da pátria. Obrigada.

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