Aterrei em Newark a 11 de Abril de 2016, às 17h00. Terça-feira.
Vi Nova Iorque do outro lado do rio. Altiva, magnífica, tão perto e ainda inalcançável.
Na sexta-feira atravessámos o rio, vimos os Rapters jogar no Barclays Center e pisei Times Square pela primeira vez. Iluminada pelos grandes ecrãs, rodopiei no centro da praça e fiquei em silêncio. Nova Iorque nunca integrou a minha lista de sítios a conhecer. Não sou miúda das grandes cidades e na altura, emigrei para encontrar a peça do puzzle que me fugiu. Emigrei porque estava infeliz, e só esse motivo foi suficiente.
Vi Nova Iorque a meus pés do topo do Empire State Building, chamei um táxi, trinquei um pretzel, apalpei a relva do Central Park, dei de comer aos esquilos e voltei a New Jersey. Estava na hora de trabalhar. E trabalhei, muito. Fui bartender, dog sitter, babysitter, secretária, manager de redes sociais e de uma imobiliária.
Todos os dias sentia saudade, uns mais que outros. No entanto, estava feliz.
Nos tempos livres, fui escrevendo. Um blogue e um livro. Ganhei paixão pela fotografia, pelo vídeo e senti a minha criatividade esticar. Instalei uma aplicação de encontros amorosos, inscrevi-me num ginásio aberto 24h, procurei a dança, partilhei casa, vivi sozinha, conheci dezenas de estados, comprei dois carros e continuei feliz.
Continuei feliz, na vida difícil de emigrante, até perder o meu pai. Nessa manhã, perdi tudo. A felicidade, o rumo, a certeza e a coragem. E desde então que não fiquei feliz em parte alguma.
Na verdade, as garras que me prendiam à vida de emigrante perderam força. E desde essa manhã fatídica que iniciei a minha jornada de volta a casa. Demorada e por etapas, que viu o seu desfecho em 2020. O ano que volto a casa, o despertar do sonho.

Um dia escrevi “New York, I love you!”, onde descrevo Nova Iorque como aquela que aparenta ser tudo aquilo que não é. Como se ao analisar com uma lupa o que se vê a olho nu, me tivesse deparado com uma realidade distorcida. E mesmo tendo essa primeira impressão, deixei-me engolir pelo sonho, pela aventura e desafio. Por aquilo que vi em séries como “Gossip Girl” e “Sex and the city”. (Ah, como gostaria eu de ter visto “The Deuce” enquanto lá vivi!).
Vivi numa América dividida politicamente, onde ser democrata ou republicano definia o círculo de amigos, o tom de voz e o nível de sarcasmo. Vivi em Nova Iorque em 2020, o ano pandémico, antirracista e completamente deserto de turistas. Lutei pela igualdade e pelo amor, por esse motivo desfilei pelas ruas, gritei abafada pela máscara e de cartazes em punho. Porém, comecei a sentir desconforto, insegurança e infelicidade. Comecei também a reparar no lixo, que sempre se amontoou nas bermas das avenidas. Senti nojo do cheiro nauseabundo da urina, do lixo, da merda de cão e do peixe podre. Vi ratazanas todos os dias de Junho a Setembro, a vasculhar nos restos de comida, a escapulir pelos buracos das grades cinzentas dos restaurantes e a correr pelas linhas férreas.
Mas fossem apenas os roedores e os cheiros, fosse só o mundo lá fora.
Com a pandemia o exterminador, que todas as semanas visitava o prédio onde morava, não apareceu durante quatro meses. Matei baratas todos os dias, de manhã à noite. Tinha ansiedade em abrir os armários das conservas, porque sempre havia uma maldita que corria desnorteada pelas prateleiras. Não adiantava o quanto se limpasse, elas estavam em todo o lado. No ralo do chuveiro, dentro dos botões do fogão, debaixo da taça da água do gato e até dentro da máquina do café.
A renda paga pela “caixa de sapatos” onde vivia, era de quatro gordos dígitos e num bairro afastado do coração de Nova Iorque. Nada que já não estivesse habituada, era o que se podia pagar. No entanto, com a pandemia a arrasar a cidade, com o recolher obrigatório imposto, com o turismo impedido e com o encerramento do comércio de rua, restaurantes e bares a cidade virou selva. Dei de caras com uma Nova Iorque promíscua, perigosa, podre e pobre. Ouvi tiros e porrada, chamei a polícia várias vezes. Vi uma mulher a injetar-se com droga, vi homens caídos, pedrados, bêbados, a gritar contra as paredes e bocas-de-incêndio, a soprar folhas caídas no chão, a correr nus e a masturbarem-se em plena luz do dia.
Fui assediada sexualmente todos os dias. Uma vez, senti e percebi que estava a ser vigiada por um homem do prédio em frente ao meu. Nunca mais sai de casa sem o gás pimenta armado na mão direita e sem a chave de casa entre os dedos esquerdos. De pouco me valeria, mas recusei ceder ao medo e enjaular-me dentro de casa. Comecei a sair de casa com uma camisola larga e calças de fato-de-treino por cima da roupa que queria mesmo usar. Mas nunca estive em paz. Reduzi então as saídas à rua sozinha e passava o dia na escada de incêndio. Quando anoitecia procurava as estrelas, mas os edifícios altos não me permitiam encontrá-las. Nunca lá vi o nascer ou ao pôr-do-sol e para alguém que encontra na Natureza o entusiasmo da vida, isto é tortura. Todos os dias pareciam assustadoramente iguais, e mesmo que nunca tenha deixado transparecer esta agonia, me queixado ou preocupado quem deste lado me ama… Mesmo que tenha lutado para viver todos os dias ao máximo… Num desses dias coloquei tudo na balança, medi os ganhos, contabilizei as perdas, fiz malas e vim embora. Fi-lo quando percebi que a teimosia em ficar na cidade dos sonhos, das luzes e das oportunidades me rasgava a alma. Me fazia chorar, me fazia correr do comboio para casa como se estivesse a ser perseguida, como se a qualquer momento uma tragédia fosse acontecer. (E várias aconteceram, pesquisem se não me levarem a sério. Pesquisem também a quantidade de pessoas que trocaram Nova Iorque pelo campo ou praia, de Maio até agora).
Eu fui uma dessas pessoas. Decidi voltar para casa. Escolhi a família, a segurança, o nascer do sol às sete da manhã, o pôr-do-sol na praia, o deitar no cimento a contar as estrelas e as lambidelas do meu cão. Troquei a cidade que nunca dorme por aquela que me permite dormir em paz. Vim amargurada, desiludida e triste.
Nova Iorque é uma cidade de passagem para quem não procura uma vida de riqueza.
Tenho saudades dela, de quando ela me fazia só bem. Nova Iorque fez-me autora, mulher destemida e devolveu-me a magia do amor. Nova Iorque preenche-me os sonhos excêntricos mas não a alma. E a minha alma é simples… Ela fez-me perceber o quão simples sou e o tão pouco que preciso para viver.
Foi por isso que voltei, por tudo isto. A decisão foi simples, a mudança emocionalmente complexa. É desafiante calar as vozes altivas que Nova Iorque plantou no meu cérebro. Redimensionar os meus sonhos e adaptá-los a uma casa que mudou desde que emigrei. Mas neste ano pandémico, onde tudo está do avesso, escolho as batalhas que só de mim dependem a vitória. Estou em segurança e em paz. E os meus também.
Por agora é assim, as futuras páginas da minha vida estão sempre em branco.
Sei que um dia volto a Nova Iorque. Ela tem esta capacidade inexplicável de nos tornar reféns. De nos viciar no jogo, na adrenalina e na opulência. Criou em mim um desejo insaciável, uma vontade que só lá satisfaço. Um dia, de passagem, volto para relembrar as boas memórias, reviver rotinas passadas, abraçar quem corajosamente lá ficou e para beber a epinefrina que aqui me escassa.
Despedi-me de Nova Iorque a 16 de Setembro de 2020. Sentada numa das janelas do Top of the Rock, completamente deserto de turistas. Vi-a a meus pés, tal e qual como no início da minha jornada como emigrante. Apertou-me o coração e a “New York, New York”, de Frank Sinatra, ecoou pelo meu corpo.
I was apart of it.
New York, New York.

Author

12 Comments

  1. Um texto cheio de coragem. Coragem que é necessária para uma pessoa expor o que vai dentro de si. Continua a encantar-nos com as tuas escritas e parabéns por tudo o que já conseguiste.

  2. Uau! Que testemunho incrível. Não é comum e acredito que por isso não seja fácil descrever o lado obscuro da suposta “cidade da luzes”. Mais uma vez, nem tudo é o que parece. E nas redes sociais só partilhamos o que queremos. O belo, o incrível, o inspirador para outros. Parabéns pelas palavras e pela coragem (que de certeza foi muita!).

  3. Adriana

    Que coragem a dos imigrantes. Um testemunho muito puro e genuíno. Parabéns💪🏻

  4. Ao ler isto sinto que me revejo.
    Cheguei a NYC em 2014, portanto sei bem das diferencas que falas. Penso da mesma forma, que esta cidade ja nao vale a pena, que nada chega a estar perto dos nossos e quem nos ama.
    Chorei bastante, mas hoje em dia tenho ca o meu marido, a unica razao que me prende.
    Infelizmente penso que esta america esta cada vez mais dividida, sobretudo depois de sabado e o resultado das eleicoes.
    Nao sei para que america caminhamos, tenho saudades do meu portugal ao qual iria este ano mas o covid trocou-me as voltas…

    Coragem
    A todos nos.
    Continua com esta escrita que tanto amamos deste lado de ca.

    (a pontuacao em falta e pelo teclado lol )

  5. Francisca Gonçalves Gomes

    Parabéns pela forma crua como descreves a cidade que muitos sonham, mas na vida dificilmente os sonhos são realidade.
    Comecei a seguir te na quarentena e sempre me questionei o porquê de teres deixado NY, mas depois de ler compreendi.
    Obrigada <3

  6. Márcia

    As tuas palavras fazem-nos sentir tudo o que descreves, que lindo. És uma guerreira! Bem vinda a casa ✨

  7. Joana Antunes

    Meu Deus que texto!
    Parabéns por toda coragem, especialmente por falares o que muitos sentem e não são capazes de dizer… Obrigada por mostrares o outro lado de New York que não mostra nos filmes nem nas fotos de quem lá vai!

  8. Ângela

    ♥️♥️
    Consegui sentir a tua angústia, a tua tristeza… não é fácil largar um sonho mas acredito que o amanhã vai ser melhor e que vamos rumar a um futuro mais brilhante.
    Hang in there 🌈

  9. Muitos parabéns!
    Adorei, não fazia a menor ideia dos motivos que te tinham feito voltar até ler o texto e ficar arrepiada.
    Muito corajosa! Obrigada pelo texto magnífico!