Hoje dei com as chaves de casa num casaco de Inverno que arrumei na passada quinta-feira.
Eu não sou de perder coisas importantes, não sou desatenta ou esquecida. Em vinte e nove anos da minha vida, perdi a carteira uma vez.
Hoje, depois de oito horas de olhos postos num computador, a resolver problemas e a levantar outros, arrastei-me até casa. Caminhava a desejar que as dores menstruais dessem tréguas, que o copo menstrual me assegurasse e que as pontadas na cabeça aliviassem. Eu não sou de queixinhas ou de Brufen, queria tanto o meu sofá. E quando levei a mão ao bolso, e à carteira, e à mala do computador e a todos os bolsos que trazia na roupa, não encontrei as chaves de casa. Sentei-me no degrau à porta de casa e esperei, cinco horas. Nada mais havia a fazer. Não havia pai, mãe, irmãs, amigas ninguém que me pudesse ajudar.
A primeira hora distraí com o telemóvel, depois insultei-me. Chamei-me de idiota e de incompetente. De inútil, também.
É, há dias assim.
Primeiro vem a desilusão pessoal, que somos menos que todo o ser humano vivo, depois o mar da ansiedade. Cheio de tubarões e sacos plásticos que me sufocam.
Ansiedade ao pensar que isto de não ter quem amo perto, dá medo. Mais medo dá quando penso na largura do oceano que me separa de casa. Depois, a dúvida.
“Mas que merda ando eu a fazer à minha vida? Que não estou presente em noivados, casamentos, octogenários, partos ou gravidezes? Que merda ando para aqui eu a fazer que abdico de todos os beijos à minha mãe e avó, e dos ensinamentos do meu avô para estar tão longe? Já não aprendi a lição?! Honestamente, que merda ando aqui eu a fazer? A escrever livros que falam de amor-próprio, a discutir diariamente soluções para o nosso planeta doente, a escrever um blogue, a tirar fotografias, a trabalhar como se a empresa fosse minha e a ganhar menos. Para quê? Ninguém quer saber! Não sou casada, não quero pôr filhos neste mundo doente! Não nasci para servir ou para ser servida. Sou uma miúda, com quase trinta anos. Sem raízes, casa ou carro. Sem seguir as regras ditas da felicidade! (Quase que ouço um demónio empoleirado no meu ombro: “És uma anedota”).
Depois vem o silêncio.
Depois vem o nada.
Algumas vezes vem o choro.
Vem também a saudade, o medo do futuro e da morte. Não da minha, mas da morte dos outros. Apaga-se a esperança e o sonho vira amnésia. Fico ali, com o cérebro empapado e a minha alegria a cair em espiral num poço sem fim. A bater contra as paredes e a desfazer-se.
E de repente, um ombro amigo:
Ena! Pelo menos não estás à chuva!
Entro em casa, procuro e encontro, desconhecendo como, as minhas chaves.
Respiro fundo, barrico-me no chuveiro e obrigo-me a pedir-me desculpa.
A minha vida não é perfeita mas também não é anedota. A minha vida não é a vida que um dia idealizei, mas foi a que eu escolhi. Por um algum motivo, que não o acaso. Nunca fui de tomar decisões radicais sem que todos os ângulos, distâncias e perímetros fossem cuidadosamente calculados.
Eu sei, cheguei até ao meio desta montanha sozinha. Eu sei!
Eu sei que sou do tamanho dos meus sonhos, e só tenho 1,64 cm.
Eu sou coragem e humana. Sou coronel e pavor. Eu sou minha antes de ser qualquer outra coisa, que de mim queiram fazer.
Eu sou de carne e osso, não sou feita de likes e filtros.
E quando hoje dei por falta das chaves de casa, dei também por minha falta.
Não sou maquinaria, não sei pausar medos e emoções, o meu corpo dói sem agenda e as minhas dúvidas são humanamente aceitáveis. E mesmo que não fossem, são minhas.
Quando a ansiedade chega, só há um monte de nada a fazer. É respirar fundo e esperar, como quando tomado um comprimido. Vai passar, não é tempo para pensar mudar mundos. Vejo a ansiedade como a luz amarela dos semáforos, tenho que abrandar antes que perca os travões. E este abrandar pode ser só por um dia, suficiente para relembrar que sou feliz com as minha escolhas e que se não cuidar de mim, mais horas virão sentada em degraus.
Isto foi a vida a obrigar-me a ouvir, subtilmente e indolor. Obrigada.

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3 Comments

  1. Solange

    Que transmissão de sentimentos…não por uma chave perdida mas pela anedota de vida! Na verdade Anedota não lhe chamaria, mas talvez singularidade, simpesmente porque não nos fixamos nos pontos convencionais que a cultura na qual crescemos nos ensinou. 30 anos sem casa, sem carro, sem casamento, sem filhos, sem projecção para nada disso, mas ao mesmo tempo com muito conhecimento pessoal e com muita vontade de nos realizarmos. Estaremos erradas??? Ou não soubémos ver corretamente o mapa da vida???

    • Michelle Rita

      Tu e eu com o mesmo mapa em punho. Certa estou que não estamos erradas.
      Somos a certeza na diferença. Peculiares e felizes, quase todos os dias.

  2. Marina Ferreira

    Conheço esse sentimento, essa sensação de estar à deriva, sem ninguém em quem me apoiar ou pedir ajuda. Mas a verdade é que me forço a focar em soluções ao invés de só olhar para o problema. Se nos ficarmos demasiado no problema, tudo se torna mais assustador, cinzento… A verdadeira batalha é conseguir meter a ansiedade e angústia que esses momentos causam de lado, nem que seja só por uns minutos, e identificar soluções. É preciso coragem, sim, mas no final sinto uma onda de orgulho por ter conseguido resolver tudo, sem recorrer a outros.
    Espero que já tenhas recuperado do susto 😘 Btw, post maravilhosamente escrito.