Incertos estão de quando o jogo de xadrez começou, desde o primeiro início que se desafiaram. Que se quiseram provar e ter. Um tom de pele que agradou, uma gargalhada que saciou o ouvido, um olhar curioso, uma atração fatal, uma colisão de ímanes.
Dançaram.
Uma dança perigosa, como línguas de fogo embriagadas.
Obsessivamente se conquistam.
Crêem-se imortais.

Juntos ateiam centenas de fogueiras. Alucinados d’amor, como quando a cabeça do fósforo raspa a lixa castanha. A magia começa e os truques de ilusionismo também.
Quem os vê aplaude, é raro ver um desvairo passional deste calibre. Afinal, quem paga o bilhete do circo não fica para varrer os confetes.
Eles creem ser amor o que vivem, na verdade nunca antes sentiram igual. Julgam-se almas gémeas, amores para sempre e amantes para toda a vida. Compõem o seu duo recordativo com noites longas, com gargalhadas no pescoço, com danças de boca colada e com mãos entrelaçadas que pintam círculos pelo ar.
Talvez, em algum momento, tivesse sido amor.
Há flores na mão dela, há duches a dois. Há promessas, juras, ideias para pedidos de casamento e nomes de bebés favoritos. Recriam beijos dos clássicos do cinema, contemplam as estrelas com as costas estateladas no chão, esperam que o sol se vá, dizem olá à primeira estrela que pinta o céu. Banham-se ao luar, conversam à lareira, dividem auriculares, partilham música e baldes de pipocas. Sempre a dois, ainda com respeito.

Enterram-se em memórias boas, daquelas que nunca mais se esquecem.

Não temem, não se justificam.

E assim seriam felizes, para todo o sempre, até que a última bolha de ar escapulisse de um dos pares de pulmões, e morressem. Era assim possível, se a vida em redor tivesse secado, se as pessoas fossem máquinas perfeitas, que não pensam ou sentem diferente. Se tudo fosse mecanizado, se os dias rotineiros se cumprissem. Se assim fosse, nada os abalaria.
No entanto, enquanto o mundo gira também eles rodopiam.
Há uma quebra, uma fuga na bolha de ar em que se inflamaram. Uma mentira estúpida, uma falha comunicativa, um alterar de tom de voz, um não convite, um ex-namorado, uma ex-amante, uma família recatada, uma discussão bêbada ou uma chamada não devolvida. Uma opinião diferente, um que sente mais que outro, um que respeita mais, um que não vê o pormenor, um mais ciumento, um mais teimoso, um que não diz obrigado, outro que não sabe pedir desculpa.
Não sabem viver no mundo.
Combatem uma guerra que os dois perdem, sempre.

Dão tempos e pausas.
Tantos tempos, tantas pausas… Deixam que a saudade os enlouqueçam, os faça voltar. Suspensos num querer assombrado. E resulta, sempre resulta.
Três dias, sete dias, quinze dias, um mês, dois meses, nunca mais que três meses. Et voilà!:

“Tenho saudades tuas…”

“Eu também…”

Não temem, não se justificam.

O que antes foi quebra não se resolve. Estão sedentos, como se só no outro houvesse o ar que precisam para se arrastarem. E só por isso voltam.

Quando voltam, volta o fogo. Um beijo que atiça as veias, onde a alma quase morre de overdose e o coração cansa de cólera.
Agarram-se com violência, beijam-se freneticamente, gritam de prazer. Ali mesmo, onde tiver de ser, onde se quiserem.
Não comunicam. Não se confiam.
Dormem nus, em cima um do outro, porque não se querem longe. Fisicamente longe. Com um universo de problemas empilhados no inconsciente.
Consomem-se, desaprendem a viver sós, colam palas pretas nas laterais das covas dos olhos. O mundo paralelo não existe, são o mundo um do outro.

Entre tempos e contratempos, há espaços que outros eles e elas entretiveram. Enquanto a mensagem saudosa, e de madrugada, não caiu. E o mundo vira trevas. São genuínos na estupidez, crus, inconscientes e mortíferos. Machucam-se com palavras vazias e ódios passageiros. Querem tanto o que antes tinham, a beleza do primeiro início. Querem tanto novas boas memórias…

Dizem que “amor que não é cego não é amor.” E agora?

Ele fica sentado na calçada, com os cotovelos cravados nos joelhos, a raspar as unhas no escalpe. Ela chora ao volante e sem rumo.

Eles.

Parceiros numa dança nauseabunda. Presos numa dependência miserável. Doentia. Tóxica. Gritam sem som e sem propósito, asfixiam-se sem dor. Espancam-se sem toque e maltratam-se com palavras precoces. Alados, porém não cansados do negrume. Crentes que é amor maligno que os une. Julgam que a vida do outro lhes pertence. Que se devem amor igual ao que nasce nas mães quando parem. Que são o cancro um do outro. Permitem que o cabelo caia, que os músculos sequem, que as olheiras escureçam e que a vida perca cor.

Racionalmente cegos, surdos e mudos.

Vivem assim.

No desrespeito pela individualidade, pelo crescimento do outro como ser humano que respira sozinho. Não há companheirismo, incentivo e simpatia pelo que o outro é e cria. Há crítica destrutiva, ciúme, sede de poder e julgamento. Há tensão e insegurança, défice de energia e autoestima.
Há falta de paz. Há paz podre. Há um lar de merda.
Há distúrbios de personalidade e atitudes que roçam a psicopatia.
Há conformismo numa companhia que não faz bem, ou mal. Só existe, como aquela cómoda que se dá falta quando já não existe.

Existem na passividade, revoltados e infelizes. Suportados pela culpa e pelo vazio que pesa a nada. Palhaços nos estados de humor, nas máscaras que usam.
Não se deixam fugir, invertem os papéis alternadamente. Ora um foge agora, ora o outro quer fugir amanhã. Nunca ao mesmo tempo. Nem juntos, nem separados. Não deles, pertencentes a ninguém. Fantasmas

Ficam ali.
Lado-a-lado. Mortos.
A cheirar mal, bolorentos. Decapitados, sarapintados com manchas pretas esverdeadas.
Respiram juntos por favor.
Consomem uma droga d’amor, sem desmame.
Não temem, não se justificam.

Na fotografia, Ricardo Bento
Na interpretação, Rui Soares e Michelle Rita

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