No bolso direito das minhas calças dorme o dinossauro, como carinhosamente o apelidei. É um Alcatel, que permite apenas chamadas e mensagens de texto. O ecrã é bem mais pequeno que o meu dedo mindinho, a bateria dura uma semana, a câmara exterior quase não funciona e o toque de chamada ouve-se a quilómetros. Não tem WIFI, dados móveis, reconhecimento facial ou dedal, bloqueio automático, GPS ou jogos.
É um telemóvel, serve para atender, telefonar e escrever mensagens.
Ainda te lembras quando só o usávamos assim?

No bolso do casaco, porque não cabe no bolso das calças, descansa o mini computador portátil. Aquele que faz tudo, menos chamadas porque está em modo voo desde que deixei os EUA:

– Porque não colocas o número português nesse Iphone X(pto) ?

– Porque não quero.

– Mas assim não estás sempre contactável.

– Eu sei.

E há olhares confusos, que não me entendem ou tentam entender.
Na verdade, o dinossauro serve para me desconectar do mundo. Porque, desnecessariamente, gasto quatro horas diárias de pescoço curvado e de olhos vidrados num ecrã. E que fosse só isso. Dou por mim a pedir as passes do WIFI antes de pedir um café. A fotografar mais do que visualmente memorizo. A escrever notas digitais e a esquecer do papel e da caneta. A comprar mais roupa do que preciso ou visto. A fazer-me acreditar que preciso de bens materiais que não me acrescentam, em nada, como ser humano.

Isto é triste.
É sinal que ando a viver esta vida pauperrimamente.
Mas não me fico por aqui.

Na televisão do café, menos requintado mas com o melhor pastel de nata, vejo as notícias e sarcasticamente sorrio. Tentando interiorizar as imbecilidades que voluntariamente aceitamos cumprir. Estamos na época dos desafios. Dos desafios que alguém manda para o ar. Alguém que vê, claramente, a carência de atenção no meio social, o querer ser reconhecido a qualquer custo e desprovido de conteúdo.
Desafios como juntar 40milhões pessoas (estou a ser humilde neste número), para gostar de uma fotografia de um ovo. Ou de uma banana. De segurar um foguete na mão até este, quase, explodir. De mostrar ao mundo como erámos há dez anos, de cumprir tarefas de olhos vendados, de jogar jogos que nos tiram a vida, de matar animais, de bater em inocentes e de tantos outros desafios de merda.
Ficam sem dedos por causa de um foguete, conduzem de olhos vendados, perdem tempo a querer bater records de mais likes no Instagram, de mais visualizações no Youtube e de mais partilhas no Facebook. Tudo por um vídeo ou fotografia viral, que agrade aos outros. Não a eles, mas aos outros. Porque se os outros aceitarem, nós somos os maiores! Os reis da Cocada preta! Quem tem o olho na terra dos cegos!

Então, vamos lá cumprir os desafios. (Os challenges, em inglês). Para mostrar aos outros que vivemos no limite, que é fixe ser se irresponsável e que ser idiota dá meia dúzia de segundos de fama.
Vamos todos parecer mais estúpidos do que aquilo que já somos?
É para isto que andamos a viver?
É para isto que viemos ao mundo? E que nos pariram?
Deveria eu não usar o sarcasmo. Deveria eu saber lidar com estas mentalidades, por ventura não sou psicóloga. Por ventura, não sou ninguém de voz maior. Mas gostava.
Gostava de fazer ver que na verdade, ficam só cicatrizes, físicas e/ou mentais, e com estórias estúpidas que perpetuam durante toda a existência.

Isto é triste.
Andamos a fazer isto mal.
Mas também não me fico por aqui.

Sentada à mesa com quem mais amo é rara a vez que o tema de conversa é outro que não a vida dos outros. Não se discute cultura, história, viagens ou experiências culinárias.
Nas bancas, imprimiu-se a vida dos outros.
Nos cafés, discutem-se as relações falhadas, as gorduras a mais ou a menos, as raízes dos cabelos, os sapatos, as orientações sexuais e tudo o que mais houver, dos outros. Só se ouve falar da vida dos outros.
Não de forma positiva ou construtiva. Mas porque não há mais nada que se falar. Não há outra forma de socializar que não envolva mandar os outros ao chão.
Que asno. Não há nada nesta vida que mais me enoje do que se falar dos outros, como se soubéssemos as verdades absolutas de toda a humanidade. Como se existissem protótipos de normalidade humana a seguir.
Ena… somos tão cobardes.

Isto é triste.
Andamos a viver isto mal.
Gostava de ficar por aqui, mas ainda não.

Somos Narcisos.
Vivemos como Narcisos.
Morreremos, tal e qual, como Narciso.
Afogados no nosso ego e no nosso próprio umbigo.
Eu, eu, eu, os meus.

Andamos de espelho na mão, a contemplar a nossa beleza todo o santo dia.
Preocupadíssimos em pintar as brancas capilares, mas não tão preocupados com os púbicos brancos. Esses não estão à vista.
Mostramos ser o que nos vendem como o pináculo da perfeição.
Não nos partilhamos com desconhecidos. Não trocamos ideias com estranhos. Vivemos na nossa bolha de merda. Primeiro eu, os meus e depois eu outra vez. (Porque já tinha saudades).
Mexemos massas e somos capazes de aglomerar centenas para coisas fúteis e sem ponta de nexo. Porque não fazer o mesmo por causas mais nobres?
Vivemos para sempre? Os segundinhos de falsa fama combatem o vazio de compaixão?
Não há consciencialização social?
Não há mais nada de interessante para se fazer e dizer enquanto cá andamos?

Caramba.
Isto é mesmo triste.
Andamos a viver isto mal, tão mal.
Temos tão mais conteúdo, somos tão mais capazes. Tão mais bonitos.
Que sirva isto de uma pausa.
Que este texto faça ver diferente.
Que seja isto tema de mesa do café. Isto, que eu escrevo e não eu.
Porque não sou melhor ou pior que tu, e tão pouco procuro ser tema de conversa.
Que bonito seria um mundo onde todos somos importantes.
E como um dia alguém me ensinou, TODOS é uma palavra muito importante.
Andamos cá todos, ninguém anda sozinho.

Eu sei, isto não vai mudar o mundo.

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2 Comments

  1. Catarina

    Melhor não podias falar! Primeira vez que leio um texto teu e… PARABÉNS! Mundo narcisista que precisa acordar para o MUNDO!
    OBRIGADA PELA PARTILHA DE TÃO BELAS PALAVRAS 👏🏼🙏🏼