O corpo onde habito é, hoje, o meu sítio favorito. O templo onde encontro o silêncio e a tela que os outros veem.

Hoje não desejo outro.

Hoje aceito-o tão e qual como ele é, venerando cada relâmpago lilás nas pernas, as cascas de laranja, as sardas envergonhadas e as rugas contadoras de histórias.

Hoje é assim, mas nem sempre assim foi.

Desde bebé que os meus grandes olhos são o foco das atenções. São o que de maior e mais precioso tenho. E talvez a característica mais relevante aos olhos dos outros. Impossível não dar por eles.

Ao crescer várias foram as vezes que me compararam a um red fish, ou a qualquer cartoon que tivesse os olhos esbugalhados. Nem sempre com o melhor tom de voz ou escolha de adjectivos. O que me levou a ter vergonha dos meus grandes olhos, a contemplar o chão e a evitar contacto visual com o que quer que fosse. Pessoas, câmeras ou espelhos.

Aos quinze anos, a adolescência apresentou-me o eyeliner preto e pintei a pálpebra inferior todos os dias. Foi o meu escudo de guerra, durante onze anos.

Os meus pés, que muito se assemelham aos pés dos Hobbits, não pelo pelo no dedo grande mas pelo tamanho e robustez. Com a idade, parecem ter vindo a encolher. Palavra de honra, se já calcei o 37,5 hoje calço o 36,5/37. No entanto, o que não encolhe é o segundo dedo do pé, que se destaca claramente em altura e parece uma antena parabólica instalada num telhado. Durante vários anos não pintei as unhas dos pés para não chamar a atenção.

Gostava de não sair ao meu pai e de ter mais mamas. Mas se os pés têm encolhido com a idade, há outras coisas que curiosamente têm crescido.

Estranhando mas não reclamando.

Sou roda baixa, calhou-me o pauzinho mais curto quando distribuíram a altura pelas futuras filhas da minha mãe. Por ventura, posso subir nos saltos, no entanto sinto-me todas as outras mulheres menos eu quando o faço. Contudo, a vista daqui de baixo é boa e confortável.

No Verão mudo tão facilmente de cor que parece que pertenço a outra família que não a minha.

Os meus dentes são naturalmente brancos e direitinhos mas a minha mãe disse-me uma vez, porque não queria que outro alguém me magoasse ao dizer, que estava com mau hálito e por isso fico constrangida quando me falam perto. Não sei se ela se referia apenas a um mau hálito ocasional ou frequente, mas ficou-me até hoje.

A minha gengiva superior é alta, sei agora onde estão alguns centímetros que me faltam na altura, quando me rio com vontade o meu sorriso é branco e rosa. Como a pantera cor-de-rosa, é assim que lhe chamo desde que comecei a gostar dele.

O meu cabelo sempre teve vida própria, não é liso ou encaracolado é o que lhe apetece. É escuro e volumoso, e descobri que fica com reflexos do sol quando passo tempo fora de casa e em sítios quentes. Eu gosto dele. É a minha personalidade numa cabeleira. Sempre me ocupou metade da cara, rebentou com inúmeros elásticos baratos e nunca sossegou com uma bandolette. Não aceita que o escove ou lave com shampoos baratos. Deixar secar ao natural, sem produtos que o definam, também não é opção. Por causa dele encaixei, na perfeição, no papel de mulher das cavernas, no sarau da escola do quinto ano. Como nunca o entendi, fiz dele trinta por uma linha. Pintei de rosa, roxo, loiro, vermelho e preto. Coloquei extensões de cabelo, brilhantes e azuis. Fiz ondulações, onde pareci um caniche, cortei-o de todas as formas e tamanhos, e arrependi-me sempre que o fiz.

Tem dias que cai com mais facilidade que outros, escuta-me demasiado bem. Hoje, estamos em paz. Vivemos no mesmo corpo mas só nos cruzamos ao fim-de-semana.

Os meus membros superiores, na juventude bem mais finos, são decorados com pelos escuros nos antebraços. E não há muito tempo, alguém vivamente me aconselhou a depilar os antebraços porque eram demasiado peludos e pouco femininos. Como ela me disse. Ela, tão distante de mim em todos os sentidos e tão prontamente a opinar sobre a minha pelugem.

E por isso, eu que resisto a acatar opiniões infundadas, quando estava na depilação, pedi que os depilassem. Contrariada, porém não forçada. Assim que senti a primeira puxadela, ouvi o meu inconsciente gritar:

O que estás a fazer? Eles já cá vivem há décadas!

Arrependi-me no dia seguinte, careca nos antebraços.

Gostava também de não ter acne. As borbulhas rebentam-me todos os meses, todos os anos e desde sempre. Os produtos caros, baratos, caseiros e clinicamente comprovados não resultam. Tenho a certeza que aos cinquenta anos, me vai nascer uma borbulha no meio da testa. Em comemoração de ainda estar viva.

E um dia , que não sei qual. Tudo mudou.

Um dia o reflexo no espelho, era meu.

Um dia, alguém me beijou de manhã cedo, me elogiou os olhos desmaquilhados, o cabelo selvagem e os pés “egípcios”. Um dia, alguém me segurou a mão quando tentava esconder o meu sorriso. Um dia, alguém me disse que era bonita, de qualquer forma. Ainda assim, não foi nesse dia que acreditei, não procurava a aprovação dos outros mas a minha.

Foi quando senti profunda tristeza, sentada no chão frio e a chorar de saudade, que o meu pensamento mudou. O sutiã push-up incomodava, o eyeliner preto escorria até ao nariz, o cabelo estava agressivamente apanhado, os braços depilados, os poros cobertos de base, as unhas dos pés sem cor e o sorriso morto. Olhei-me ao espelho e não me vi. Nesse dia, resolvi o conflito entre mim e o meu corpo. Abracei-me, aceitei o que me torna diferente, o desgaste da idade, o que me dá forma e acompanha desde que abri os olhos. Antes até. O meu molde foi construído muito antes de eu ter vergonhas. Hoje, o meu corpo é um templo. Reflexo da minha estima, do que como, bebo, penso e escolho.

E caramba…. Sou tão mais feliz!

Não sabia que os meus lábios podiam esticar mais, que o meu sorriso poderia ser maior do que algum dia foi. Que os meus olhos seriam gigantes, cheios de vontade de ver para além do preconceito alheio. Que os meus braços peludos abraçariam qualquer pessoa sem pudor e vergonhas. Porque o que vem de dentro é tão mais bonito e raro.

Num mundo onde podemos ser tudo o que quisermos, não nos esqueçamos de nós.

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1 Comment

  1. Mafalda

    Fogo!!! Que lindo texto, e não podia ser mais pertinente. Parabéns!!
    Acho que a maioria de nós vive nesse sentimento de descontentamento consigo própria e com as suas pecularidades. Sempre a tentar atingir algum padrão estúpido da sociedade e cada dia mais insegura consigo própria.
    Eu já tive todas as inseguranças e mais algumas, mas felizmente tudo já lá vai, hoje em dia aceito-me e amo-me como nunca e é a melhor sensação!! Sinto-me genuinamente bem comigo e com aquilo que sou e isso transparece, nem duvido.
    Acho que também deve ser uma coisa da idade, vai-se amadurecendo e as coisas ganham outra dimensão (digo eu do alto dos meus 28 anos 😅)
    Mas apesar de parecer ‘cliche’ e muitas pessoas apregoarem o mesmo nas redes acho que poucas são as pessoas que de facto fazem algum tipo de introspecção relativamente à aceitação e vejo isso constantemente em muitas das mulheres que me rodeiam: lindas, saudáveis, perfeitas, únicas, mas sempre com inseguranças que as condicionam/atormentam em muitas coisas do dia a dia.

    Bem, parabens pelo texto, muito bonito😘
    E parabéns pela energia que emanas, chega aqui a este lado do ecrã 😅👏