“Era uma casa muito engraçada, não tinha teto não tinha nada”.

Cantarolávamos pelo recreio da pré-escola, e só vinte e quatro anos depois, com as unhas cravadas no volante e a sufocar no choro, lhe atribui significado. “A casa” de Vinicios Morais, sussurrava na minha cabeça como se alguém tivesse colocado uma moeda na caixa de música. Como quando num filme de terror.

Eram três da manhã numa noite sombria de Maio. Não havia trânsito só o correr do rio e a sombra acastanhada do metal ferrugento. Era escuro, ainda mais escuro dentro da minha cabeça.

Entre o passado e o futuro, quis-se um salto para a morte. Senti medo e desespero, determinação e cobardia. Não sei quanto tempo ali estive, mas foi a falta de coragem e de egoísmo que me salvou.

Peguei no telemóvel e fiz uma única chamada. Engoli o orgulho, o pavor de me sentir ridícula e inferior, e confessei as minhas pobres intenções. As palavras horrorosas arrastaram-se pela minha boca, como um demónio. Ouvir-me confessar, ouvir um choro assustado do outro lado fez-me pedir ajuda.

Pedi ajuda como quem procura um médico para tratar outra qualquer doença ou dor. Um dente podre, um sopro no coração, um dedo inflamado, uma pele sarnenta, uma pelada, são males tão palpáveis como isto. Isto, que nos faz sentir pó num universo de outros pós. Que nos faz sentir que nem o nosso respirar faz interesse, que somos infelizes e que todos vivem uma vida perfeita. Onde a nossa é uma merda, sem saída ou resoluções. Que a única que forma de calar as vozes diabólicas é a morte. Isto, que nos faz crer menos e que somos nada. Isto… a depressão é isto! E isto tem que ser abordado, porquê? Porque “não quero mais ver os meus amigos morrer”.

Estar deprimido é estar doente, e não é porque não se vê no microscópio que não existe. Uma depressão não pode nunca ser questionada, avaliada comparativamente ou curada com frases como “vai trabalhar que isso passa”, “vai de férias, que isso passa”, “ a depressao é para os fracos”. Somos seres humanos, distintos na percepção e aceitação da dor emocional. Não somos iguais, não sentimos igual, não seguimos padrões exactos de cura.

Neste século em que vivo a morte é silenciosa e os sorrisos são assombrados. Onde há casas de caracóis abandonadas à beira da estrada. Fachadas de madeira podre com uma maçaneta polida.

Onde não se pede ajuda, pelo medo de se ser julgado.

Uma mente distorcida, um reflexo irreconhecível, um vazio.

Ela desapareceu, ele enforcou-se, ele atirou-se de uma ponte, ela teve uma overdose, ele cortou os pulsos, ela conduziu mar a dentro. Ela deixou uma carta, ele não. Ele aparentava estar infeliz, ela não. Nenhum pediu ajuda.

Ambos lutaram contra a luz do dia, procuraram respostas nos sorrisos, na coragem e na vida dos outros. Mas era quando estavam sozinhos que a batalha começava. Era no silêncio que os monstros atacavam, que a mente doente ganhava terreno, que a vida perdia o valor. No silêncio, e nas multidões. Num mar de som onde eles não se viam gente, não se viam importantes. E por isso, deixaram de existir. Ainda em vida, morreram. Deixaram a alma morrer e mataram o corpo. Ganharam existência na saudade e dor de quem ficou. De quem ficou para os enterrar.

Disseram-me um dia que para se tirar a própria vida é preciso ter coragem. No entanto, para andar por aqui é preciso bem mais. É preciso ter coragem para nos adaptarmos a uma vida que nunca planeámos, que não amamos, que não nos faz felizes. É preciso ter coragem para compreender o vazio, a imensidão do universo e a solidão. É preciso coragem para pedir ajuda! Para lutar contra uma doença que destrói o juízo, que suga a luz e que nos atira para o abismo.

Nunca incomodas, nunca chateias, nunca és inconveniente… nunca pode ser chato falar sobre isto. Não, não pode! Basta! É preciso conversarmos sobre isto falarmos sobre isto. Sem preconceito! A saúde mental é válida, é importante, é vital.

Espero o dia em que se fale da depressão sem medo, espero o dia que deixe de ouvir que os meus amigos morreram para os ouvir pedir ajuda.

Esta tristeza tem cura, há sempre uma solução e a morte não é uma delas. Lembra-te: ninguém anda sozinho neste mundo, e eu estou contigo.

Que seja eu também pó, numa poeira cheia de vida.

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4 Comments

  1. Lucilia Maria Pereira Rebelo

    Tens o dom da palavra. Adoro ler tudo o que escreves. Parabéns e muitas felicidades. Bjs de Bremerhaven CILA

  2. Isto.. isto é mesmo muito importante. Obrigada por escreveres o que muitos infelizmente sentem em silêncio. Eu incluída. Foi uma leitura em voz alta bastante emocional mas precisa.

  3. Ola. Parabens pelo texto. Gostaria de o poder compartilhar na minha pagina de facebook profissional. É possivel? Como posso fazê-lo e de que forma a posso “tagar”? Obrigada.

    • Michelle Rita

      Olá Rute, obrigada !
      Claro que sim, pode ir à minha página de Facebook “life with Alice” e fazer a partilha por aí . Obrigada! Um beijo